Este não é mais um sítio de religião, como tantos que por aì proliferam. Infelizmente, o mundo religioso está dominado pelo materialismo e pelos interesses de projecção pessoal e financeiro de muitos dos seus líderes. Deturpam a verdade com mentiras e usam a ignorância das pessoas que na sua boa fé neles acreditam, aproveitando-se dos seus bons sentimentos e, quantas vezes, também do seu dinheiro. Não sou devoto de nenhuma religião. Todas as religiões, ainda que possam ter alguns fundamentos de bondade, são conduzidas por homens e para homens, pelo que estão viciadas nos seus caminhos. Eu creio no Senhor Jesus Cristo. A minha "religião" é a Pessoa de Jesus Cristo. A palavra religião significa religar (re+ligare) e, de facto, apenas o Senhor Jesus Cristo re-ligou o que estava separado, isto é, o Homem com Deus (1 Timóteo 2:5,6). É por isso que a minha fé não se baseia nas tradições humanas ou em qualquer religião (seja ela católica, evangélica, ortodoxa ou outra), mas nas Palavras do Senhor Jesus Cristo, tais como se encontram exaradas na Bíblia Sagrada, a única regra de fé espiritual em que faço pautar toda a minha meditação e conduta de vida. (Luz para a Vida)

[] TRADUÇÃO DA BÍBLIA EM PORTUGUÊS










«[...] espero[...] dar-vos em breve toda a Escritura Sagrada em vossa própria língua que é a maior dádiva e o mais precioso tesouro, que nunca ninguém, que eu saiba, até o presente vos tenha dado.»

João Ferreira Annes de Almeida, in A Diffirença Da Christandade


«A Bíblia em português (coisa curiosa)»

Alcobaça, Évora, Lamego, Amesterdão, Batávia, Tranquebar. .. Há uma intrigante cartografia ligada às primeiras traduções da Bíblia em português, e enigmas que os
sécu­los e a escassez de estudo redobram, ao mesmo tempo que comove a fraqueza e a fran­queza de existências que se empenharam, até ao extremo, para tornar mais próximo isso que é irredutivelmente distante: uma palavra. A essas vidas, que hoje a nossa cultura, des­lumbrada por heroísmos mais portáteis, nimba de um ignaro silêncio, não faltou nem a inteligência, nem o denodo, onde o absoluto do amor, por vezes, quase se toca. Pelo que podemos saber, seriam escusos escrivães, obedecendo ao mando de abades e reis, mas também temerários, apátridas e proscritos, que arriscavam nessa empresa toda a fortuna e destino. Laboravam no scriptorium da cerca monacal, eram cultos, hábeis, inventivos, imitadores. Reuniam bibliotecas com o mesmo instinto que a outros empurrava para juntar instrumentos do campo ou da guerra. Ou eram, então, espíritos assaltados por uma solitária liberdade, rodopiando na poderosa vibração que produz a ânsia de conhe­cer ou, mais simplesmente, de existir, verdadeiros e falsos conversos, gente do clandestino mundo, empurrados daqui para ali, por motivações íntimas que a história sonegou, incom­preendidos e ameaçados, cuja sageza resultava de imponderáveis encontros, de torções que acometem e resgatam o tráfico da razão, de deslumbres que só por si provam como, é um facto, «o Espírito sopra onde quer».

Hoje, por exemplo, na Catalunha, com o apoio de organismos oficiais e a supe­rintendência da Associação Bíblica Catalã, está a publicar-se o Corpus Biblicum Catala­nicum, edição crítica que inclui todas as traduções da Bíblia ou de textos directamente relacionados com ela, desde os inícios (século XIII) até 1900. Em Portugal, a maioria dos leitores, e mesmo leitores habituais da Bíblia, descuidam a história da tradução, estranham os seus protagonistas e o impacto que esses inscreveram na língua e nas men­talidades, como se pesasse menos, para a aproximação ao texto escriturístico, o modo como se diz do que aquilo que se diz. Quando, afinal, quem saberá identificar, com decidida certeza, no intrincado comércio entre forma e fundo, qual deles é o verso e qual o reverso?

Mas não é para uma história de mágoas que aqui somos chegados. Pois, faladas, as palavras voam, mas escritas, como para semear, permanecem. Não há que alongar dema­siado a jornada. Bastaria, quem sabe, refazer o caminho até Lamego, para o testificar.



Remexer em Sá de Miranda e Fernando Pessoa

Nessa cidade, no Museu, que ocupa o antigo Paço do Bispo, as tábuas quinhentistas de Grão Vasco dão uma esplêndida tradução plástica do bíblico enredo. Mas guarda-se ainda uma outra versão vernácula, com cobertura de carneira e aplicações de ouro, que tem recebido o nome do próprio burgo, como aliás é prática corrente nestas classifica­ções. Bíblia de Lamego, portanto. É uma Bíblia que ao crivo contemporâneo parecerá um tanto sui generis, mas não assim naquela época, useira e vezeira das traduções roman­ceadas. De facto, um título que lhe vem ajunto, reza assim: Livro das estorias da blivia do testamento velho segundo o mestre das semtenças.
Talvez seja ela, ou talvez não, pois se acumulam defensores de ambas as hipóteses, a descrita com tal devotado apreço por Frei Manuel do Cenáculo, no seu livro Cuidados literários do Prelado de Beja em graça do seu bispado: «tivemos em nosso poder uma tradu­ção historiada do Antigo Testamento, m.s. feita no século XV, em portuguez do tempo e por teólogo sábio e inteligente da língua hebraica donde era trazida a interpretação. Estava depositada em mãos de a estimar.. .». Mais segura é uma matrícula, coligida na 5.a folha do códice, que transcreve a permissão que o Santo Ofício concede ao seu privile­giado leitor: «O Cardeal Infante tem por bem que tenha esta Bíblia e leia por ela o Senhor Francisco de Sá, com condição que a não empreste. Em fé do qual assinei aqui a 9 de Novembro de 1558. Fr. Francisco Foreiro». Vários autores identificam este «Senhor Francisco de Sá» com o poeta Francisco Sá de Miranda.

Sá de Miranda é um espírito de transição. Não seria um humanista à maneira de Erasmo, mas é cioso da liberdade para revisitar as fontes que a tradição lega, e brilha como cultor de novas formas. O avisado juízo de Carolina Michaelis indica que a «leitura das suas obras provaria que Miranda conhecia bem o Antigo como o Novo Testamento» ou mesmo que se servia deles como nenhum dos seus pares. Quanto ao apego do poeta pelas páginas sagradas, ele pode observar-se em versos como estes da Carta a João Roiz de Sá de Menezes:

«Mas o que por ora aprendo
É ler livros de giolhos,
Divinos, que mal entendo.
Mas fossem dignos meus olhos,
De cegar por eles lendo».

Significativo é certamente, que na década de 30, mas já do século XX, seja também um poeta a tomar como argumento literário a Bíblia, e, no seu caso, a primeira tradução completa da Bíblia na nossa língua: a de Almeida.

«Ali não havia electricidade.
Por isso foi à luz de uma vela mortiça
Que li, inserto na cama,
O que estava à mão para ler ­
A Bíblia em português (coisa curiosa), feita para protestantes.»

O que talvez Fernando Pessoa não soubesse é quanto a sua adjectivação, «coisa curiosa», era apropriada ao objecto que tinha diante de si. Pois nenhuma outra obra lite­rária, vertida ou criada em português, haveria de chegar ao presente envolta em tamanho enigma: por um lado, os seus mais de 60 milhões de exemplares vendidos colocam-na num plano sem paralelo entre nós; por outro, esse feito é obtido numa completa clandes­tinidade cultural, longe do reconhecimento e do prestígio que lhe são devidos. O seu tra­dutor, João Ferreira Annes d'Almeida, praticamente um desconhecido, é, no entanto, um dos nomes cimeiros da língua portuguesa e um clássico de excelência. Estamos perante um verdadeiro caso!

Os antecedentes portugueses de Almeida

Mas a história é o que é, formulação que parece enferma de conformismo, porém, num conversar sobre as Escrituras Sagradas, depressa nos faz entrar em outra dimensão, pois o transcendente se dá a ver em muito matagal miúdo, como a sarça de Moisés. Na grande obra de referência sobre a Bíblia no espaço latino medieval (La Bible Romane au Moyen Age. Bibles provençales, vaudoises, catalanes, italiennes, castillanes e portugaises), Carolina Michaelis de Vasconcellos assina com Samuel Berger uma nota sobre as Bíblias portuguesas. A afirmação de que partem tem uma justeza de pedra, inapelável: «a litera­tura portuguesa é, em matéria de traduções bíblicas, de uma pobreza desesperante. Tudo o que se pode dizer da Bíblia portuguesa na Idade Média caberia em escassas páginas, e a literatura manuscrita em causa, quando examinada de perto, reduz-se à memória de alguns manuscritos perdidos». Certo é, mas ainda assim...

O catálogo da biblioteca do rei D. Duarte (1433-1438) aponta a existência de alguns livros bíblicos que muito provavelmente estariam vertidos em língua portuguesa, pois nos surgem arrumados em dois campos: os volumes «de latim» e os «de lingoage». Sabemos assim que o nº 21 seria um Livro dos Evangelhos; o nº 22, Actos dos Apóstolos; o nº 23, Genesy; o nº 24, O Livro de Salomom; e como nº 31 comparece a misteriosa indicação de uma Blivia.
Quanto aos Evangelhos e Actos, temos a confirmação de Fernão Lopes de que o rei D. João I «fez gramdes letrados tirar em limgoajem os avamjelhos e autos dos Apóstolos e epistolas de São Paulo». E não apenas fez fazer. Segundo o relato de D. Duarte, o próprio rei teria traduzido em português os «salmos certos para os finados». Mas aquela Blivia? Será que circulava à data de 1438 uma Bíblia completa (ou grande extensão do Antigo Testamento) em vernáculo? É verdade D. Frei Manuel do Cenáculo, que primeiro foi bispo de Beja (1770-1802) e depois de Évora (1802-1814), refere, como atrás reprodu­zimos, «uma tradução... feita no século XV, em Portuguez». Que Bíblia era esta? Seria uma versão portuguesa da tradução latina, dita Vulgata, mas feita com auxilio do hebraico, prática tão comum em Castela? Seria uma adaptação de uma versão castelhana, feita, essa sim, cotejando o enunciado judaico? Ou então uma paráfrase ao texto bíblico, à maneira daquilo que se veio a designar por Histórias Sagradas ou Gerais?
O facto de não sabermos resposta, é importante sublinhá-lo, deve-se não apenas às atribulações conhecidas da história ou à frágil natureza do suporte físico próprio dos livros, que só preservam memória, porque triunfam de pequenos incontáveis perigos. Mas se a cada pergunta que se faz sobre a fortuna da Bíblia em Portugal nos deparamos com a notícia inve­rificável, a suposição, o debate inconclusivo, isso se deve também à secundarização do esta­tuto conferido à Bíblia. Secundarização que, durante séculos, foi fruto de uma conjuntura religiosa e teológica, mas que, entre nós, ainda não deixou de ser, académica, literária e cul­tural. Portanto não se estranhe tanto este franqueio, similar a um inventário de fantasmas.

Outra Bíblia desaparecida é a referenciada como ms.349 da Biblioteca do Mosteiro de Alcobaça, que provém do século XIV ou XV. Com a supressão dos conventos, ela ficou na posse de D. Fortunato de São Boaventura, que foi bispo de Évora, mas antes ha­via sido cisterciense e historiador naquela abadia. Ela chegou a nós apenas através de duas edições: a que Fortunato de São Boaventura promoveu quando ainda era mestre em Coimbra, e, bem mais recente, a de Serafim da Silva Neto. Seria, não uma tradução estrita da Bíblia, mas um resumo das histórias do Antigo Testamento, o que a coloca como parente lusitana da célebre Historia Scholastica, de Petrus Comestor, um dos mestres da Escola de São Victor (século XII), posto-avançado do debate teológico da medievalidade. Evoca, humoroso, o Padre Mário Martins que este Petrus deve o apelido Comestor à om­nívora apetência por livros, o que acaba por se reflectir na abordagem que ele faz do relato bíblico. Compõe uma grande narrativa sagrada, desde as origens do mundo até à emer­gência do cristianismo, que acompanha de perto o texto da Escritura, mas, sem nenhum pudor, dissemina muitos outros elementos literários e históricos, colhidos em Plínio, Flávio Josefo, Homero ou Ovídio, bem como explicações e comentários de sua lavra. Esta obra exerceu uma grande influência no Ocidente, e parece claro que a Bíblia de Alcobaça, na sua organização, tendo a tradução latina de São Jerónimo, a dita Vulgata, diante dos olhos, foge para aquela o mais que pode. Embora, como defende Mário Martins, o texto da nossa abadia cisterciense «reduziu bastante a farragem do comenta­rista» de alto coturno que era Comestor. O manuscrito de Alcobaça trazia o seguinte título: Historias d'abreviado Testamento Velho segundo o mestre das Historias scolasticas, e segundos outros que as abreviarom, e com dezeres d'alguns doctores e sabedores.

Segundo o testemunho de Frei Fortunato de São Boaventura, um manuscrito «quasi semelhante» se achava na Biblioteca do Bispo de Lamego. Foi esse precisamente que o poeta Sá de Miranda pediu a permissão de consultar e a obteve do Inquisidor Frei Fran­cisco Foreiro? Muitos garantem que sim, embora, como avisa Mendes de Castro, «o jogo das datas mal comporta tal suposição». Mas, avance-se viagem, pois o precioso volume do Museu de Lamego não faz apenas depender sua aúrea da relação que possa ter mantido ao grande escritor quinhentista. Maior provento é verificar que se este códice toma como modelo o original de Petrus Comestor, não se cinge inteiramente, expurgando a parlenda daquele e contornando suas omissões. Por exemplo, a Historia Scholastica salta o livro bíblico de Job; na edição do códice de Alcobaça restam apenas fragmentos; e é na chamada Bíblia de Lamego que essa obra-prima hebraica «nasceu em português». J. Mendes de Castro fez, em 1973, a publicação dessa «Estoria de Job» na Revista Didaskalia, da Faculdade de Teologia. É um texto admirável, corrido daquele furibundo e solitário tremor que só a grande poesia, e nenhuma outra, reverbera.

«Os meus chegados me desemparam
e aquelles que me esquiçiam escomderam-se de mym,
e os de minha cassa me ouveram por estranho.
Chamey o meu servo e nam me respomdeo;
E a minha molher aborreçeo o meu baffo. . .» (XIII, 14-17)

Job há-de gritar à podridão: «tu és meu pai e minha mãe»; e aos vermes: «vós sois a minha irmã», e marcar assim indelevelmente, sigilar como em brasa essa beleza na desvai­rada e íntima pátria que é não só a língua, mas também a memória da língua.
Talvez ainda nestes idos dos séculos XV ou XIV, tão próximos e, como vemos, tão recônditos, se deva colocar a tradução portuguesa de um extracto da Historia General de Monso X, o Sábio. Não se trata também propriamente de uma Bíblia, dentro dos limites textuais que se determinou por aceitáveis. Antes é mais um e importante testemunho do género História Sagrada, que temos estado a seguir.
Se as versões bíblicas medievais são, podemos concluir, mais um caso «desespe­rante» da escassez portuguesa, tal não significa que a Bíblia, na multiforme recepção que lhe prestam as gentes e os tempos, não tenha constituído, de então até ao presente, um poderoso vínculo de cultura e de identidade. Para usar uma expressão de Mário Martins, a Bíblia «forjou-nos» a nós, tal como à Idade Média. O seu estudo, conciso mas esclare­cidamente insinuante, intitulado A Bíblia na literatura medieval portuguesa (1979), deixa provado como, dos livros de cavalaria à crónica histórica, da poesia religiosa ao próprio mapa lexical, a Bíblia desempenhou o papel de «grande código», expressão proferida por William Blake, reconhecendo quanto a actividade simbólica e cultural do Ocidente foi ininterruptamente fecundada pelo texto e pela simbólica bíblica.
A Bíblia desdobrava-se em plurais sentidos na pregação: do sentido literal depressa se partia para os fascínios da imaginação teológica, colhendo alegorias e figuras, para desem­bocar no fazer moral e anagógico. A própria natureza era uma Bíblia que se abria para todos, pois entre o texto sobrenatural e o da natura podia não haver coincidência, mas não havia também sobressalto. Dos prados do mundo se subia aos prados da Escritura, que simbolicamente os reflectiam. E o mesmo com os bestiários, os herbários e as colecções de esperas e de virtudes. No seu Livro da Montaria, D. João I medita na ascese de coração, reivindicada pelas comparações de Jesus, e aplica-a ao adestramento de um caçador. No Leal Conselheiro, D. Duarte «assimilou de tal modo a literatura sagrada que muitas vezes subsiste a dúvida se tal frase ou vocábulo é do rei ou da Escritura» O. Mendes de Castro).
Mas D. Duarte não ignora menos as dificuldades da leitura bíblica. Recomenda que se escape à tentação de ler em quantidade «<ainda que possas aturar ler doze folhas, não leias mais de três ou quatro») e alerta sobre o desânimo que pode sobrevir à alma, para que se não torne em empecilho «<deveis algumas vezes provar ler, ainda que vos pareça que não haveis vontade»). Nem escamoteia sequer a obscuridade no entendimento de certos pas­sos: «quando alguma cousa não poderdes entender, não vos detenhais muito, por que não há mestre em teologia que tudo perfeitamente entenda, mas passai adiante e tomai o que Deus vos der». Estes conselhos, que podiam ser dados por um Rabino ou por um Padre da Igreja, dentre os mais experimentados nos subtílimos caminhos da hermenêutica escriturística, mostram como a ausência de grandes traduções e versões não impediu o florescimento, em Portugal, de comunidades de leitores.

Avaliando os mecanismos da instituição literária, Roland Banhes lamentava o «impiedoso divórcio» que hoje grassa entre o fabricante e o utente do texto: «porque o que está em causa no trabalho literário (na literatura como trabalho) é fazer-se do leitor não só um consumidor, mas um produto do texto», que assim entra no jogo e acede plenamente ao encantamento do significante. Essa talvez perdida possibilidade de entro­samento, é bem nítida ainda no carácter fundacional do texto bíblico. Escreve AA Tavares: «Reconheçamos [...] o papel preponderante que desempenhou o latim bíblico pela via comum da Vulgata. Efectivamente o seu uso generalizado exerceu influência, sem limi­tes determináveis, em todos: pregadores e ouvintes, escritores e leitores. Todos alimen­tados, directa ou indirectamente, pelos livros santos falaram, modelaram e enriqueceram a língua. Ao lermos os primeiros escritos em português, encontramos a cada passo o elemento bíblico mais ou menos assimilado». Mas a Bíblia não moldou expressões e intenções unicamente através do latim. O rumor ancestral da sua pronúncia hebraica instalou-se também na nossa fala. Aprendemos assim a nomear o escondido nome de Deus e a citar os seus anjos (Querubim, Serafim, Gabriel, Rafael) e demónios (Belial, Satanás, Belzebu, Leviatã). Aprendemos nomes de povos e de lugares, de tempos e de costumes. Plantámos odorosos jardins. Com plantas: aloés, cássia, cominho, hissopo, mirra, nardo. E com palavras: dizendo «rei da glória» em vez de «rei glorioso»; «espírito da verdade» em vez de «espírito verdadeiro»; «cântico dos cânticos» em vez de «o mais belo dos cânticos».

No século XV ainda, vem a lume aquela que, na falta de uma tradução da Sagrada Escritura que pudesse circular, acabou por ser «a bíblia» dos navegadores e missionários portugueses: a Vita Christi, de Ludolfo de Saxónia. Este precioso incunábulo, guardado na Biblioteca Nacional, foi impresso em Lisboa em 1495, por ordem do rei D. João 11 e de D. Leonor.
Nos seus Cuidados, D. Frei Manuel do Cenáculo, traduz um texto de António Cavazzi de Montecuccolo, onde se alude assim a práticas da missionação portuguesa: «Pela Bíblia fazia o rei do Congo e com elle os seus vassallos o estúdio da Religião. Era a Vida de Christo o outro exemplar de sua instrucção. Nem parece de recusar a lembrança que o desapparecimento deste reino quasi absoluto da Vita de Christo escripta por Ludolfo de Saxónia e mandada traduzir pela rainha Da Leonor mulher del rei João segundo, haja nascido do transporte della para o estabelecimento da Religião nas conquistas.. .».
Há, com certeza, necessidade de uma explicação, pois dificilmente o rei do Congo poderia aceder a Bíblia: «ainda não existia nem edição nem manuscrito da Sagrada Escri­tura que pudesse estar em suas mãos». O que se teria passado, com probabilidade, é que tivesse escutado oralmente, na pregação, o texto bíblico e prosseguido com a leitura da Vida de Christo. E aqui os autorizados Samuel Berger e Carolina MichaeIis de Vasconcellos irrompem com veemência: «é bem sabido que antes de J. Ferreira de Almeida (1681) não existiu Bíblia portuguesa impressa nem divulgada».

Um português chamado João Ferreira Annes d' Almeida

Em 2005, junto da Universidade de Salamanca, o Capuchinho Herculano Alves apresentou a sua tese doutoral sobre «A Bíblia de João Ferreira Annes d'Almeida». Este prestimoso contributo para a resolução das impressionantes lacunas que avultam em torno da figura e da obra de Almeida será, em breve, publicado, com o concurso das Socie­dades Bíblicas de Portugal e do Brasil. Recorremos no que se segue à substancial informação ali contida, bem como a nomes habitualmente ligados à investigação de Almeida: António Ribeiro dos Santos, Guilherme Santos Ferreira, Eduardo Henriques Moreira, J.lo Swellengrebel, Edgar Hallock, Manuel Cadafaz de Matos.

A primeira referência ao tradutor João Ferreira d' Almeida, em fontes internacio­nais, tem um tom picaresco, que quadra bem ao viajante que ele foi. Ocorre num livro de viagens pela Ilha de Ceilão, publicado na Holanda, em 1672. O autor, Filippe Baldeo, a exemplificar como os elefantes podem ser repentinamente perigosos, narra que «um mi­nistro português Reformado, chamado João Ferreira d'Almeyda, quando fazia a viagem de Gale para Colombo, acompanhado de sua esposa», se viu em grande dificuldade, pois um elefante lançou a tromba contra a liteira da mulher. Os carregadores indígenas, como é de supor, lançaram-se a fugir e, se, ao final, ninguém se feriu, o certo é que, como se diz, não ganharam para o susto.

Mas sustos, confrontos, desamparos e fugas foi coisa que não faltou à bem tempe­rada vida deste português singular. João Ferreira Annes d' Almeida nasce talvez em Torre de Tavares, Mangualde. Deve recordar-se que documentos antigos o apresentam como «nativo de Lisboa», mas é natural que para um estrangeiro da época, a escrever no Oriente, «Lisboa» fosse simplesmente uma indicação generalista, sem muito rigor. Há, em relação ao nascimento nesse lugar da Beira Interior, ausência de qualquer atestação documental: permanece apenas como «a tradição que todos aceitam» (Hallock-Swellengrebel). Con­tudo, se considerarmos a importância eclesial que a figura de Almeida ganhou, desde cedo, para os cristãos reformados, este argumento deixa de parecer tão frágil. Quanto à data há outras certezas. No prefácio que apõe à sua tradução do opúsculo Differença D'a Christandade, e que constitui peça-chave para sondar a sua biografia, ele mesmo escreve: «Ao segundo ano de minha Conversão, que foi o de 1644, e de minha idade, o 16». Contas feitas, chegamos à data de 1628.
Começou Almeida, naturalmente, por ser conduzido dentro do catolicismo, inclu­sive por um tio eclesiástico, que lhe serviu de tutor. E isto já na cidade de Lisboa. Assim, porventura, se explica o invulgar apetrecho cultural e linguístico que, tão precoce, há-de manifestar. Sirva-nos, para um relance a essa estação da sua vida, a passagem do estudioso Eduardo Moreira: «Em casa do tio clérigo se conservou ele até aos catorze anos incomple­tos, educado nas virtudes e manhas, se as tinha, do seu protector. Certamente passou da gramática ao latim e, porventura, à lógica. Certamente ajudou à missa, conheceu a tábua de Pitágoras, o Lunário Perpétuo, folheou com mão esperta alguma História Sagrada e decorou João de Barros.»
Mas aos 14 anos, incompletos!, sem que o contexto seja muito claro, parte para a Holanda e, dali, para o Oriente. A surpresa desta decisão e o silêncio das suas razões, faz com que avultem as hipóteses mais díspares. Seria ele apenas um adolescente foragido, um pouco vexado pelo autoritarismo do tutor eclesiástico? Ou partiu deslumbrado pela opor­tunidade económica? Viajou sozinho ou acompanhado? É verdade que o imenso poderio militar holandês se servia de contingentes de contratados, aventureiros e esquivos. Teria Almeida acompanhado um adulto, até um familiar, quem sabe, com o fito de servir os novos senhores do vasto comércio oriental? Ou a motivação de fundo foi já religiosa? Foi ele indu­zido por alguma voz ou tendência judaizante, visto a Amesterdão da época ser capital de cristãos-novos e judeus de origem portuguesa? Pode crer-se que o adolescente que ciran­dava por Lisboa, disperso e disponível, por entre a fermentação ideológica e social desse tempo, tenha clandestinamente contactado com o cristianismo da Reforma?
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Qualquer que tenha sido o motivo para tão inesperada evasão, o que se sabe é que ela determinou tudo: a equação do seu passado e do futuro, as renúncias, as permutas, os trabalhos e as paixões.

o ano de 1642 é um marco fundamental da cronologia de Almeida. Larga da cos­mopolita Amesterdão, passa por Batávia (actual Jacarta), a caminho de Malaca. E preci­samente nesse tempo de viagem do qual nada se sabe, nessa travessia da mocidade por uma vastidão desconhecida, diante desses algures ou nenhures, dá-se aquilo que Ferreira d' Almeida apelida como «conversão»: «Aquele Benigno Pae d' as Luzes, de quem procede todo bem, por sua infinita Misericórdia taõ immerita e inopinadamente, logo 'nos pri­meiros Annos da minha Mocidade foi servido trazerme ao Saudável Conhecimento de sua Divina Verdade; 'no mesmo instante se serviu logo tambem de em mim prantar hum ardente e inextinguivel Zelo e Desejo de, conforme a o Talento que de sua paterna e libe­ral Maõ recebera, o comunicar tambem.. .». De que modo a verdade, ou o sentimento dela, se fez, no improvável daqueles confins, acesa e possível? O próprio protagonista explica ter sido consequência da leitura do folheto Differença Da Christandade, «este livrinho em Castelhano, que por Sua Divina Graça, indo daqui para Malaca, o Anno de 1642, foi servido de me deparar».

Dos 14 aos 23 anos de idade, João Ferreira de Almeida vive nessa praça. Aos 16 mete-se «a traduzir do Castelhano em Português algumas Epístolas & Evangelho d' os Santos Apóstolos e Evangelistas». Foi um início talvez prematuro e humílimo, mas ver­tendo aquilo que os nossos vizinhos tinham já há muito colhido das Escrituras para o seu linguajar, e fazendo cópias à mão para o distribuir pelas comunidades de Malaca, Batávia e Ceilão, encetou Almeida não apenas a habilidade de um ofício, mas o limiar irreme­diável de um destino. Em 1648 talvez, aconteceu o seu casamento com a filha de um pas­tor protestante holandês. Nesse ano foi nomeado Visitador de Doentes, o grau mais baixo na hierarquia calvinista: «percorria diariamente os hospitais e casas de doentes, animando e consolando a todos com suas orações e exortações» (Hallock-Swellengrebel). Em Janeiro do ano seguinte já era diácono, membro do clero de Malaca. Traduz o opúsculo Differença D'a Christandade, ao qual está compreensivelmente apegado, mas, por esse documento, sabe­mos que Almeida havia já transposto para português o Catecismo de Heidelberg e a Liturgia Rqormada. Nessa data, e razões conclusivas mais uma vez escasseiam, demite-se do encargo de diácono naquela praça-forte e parte para Batávia, sendo integrado na Igreja local.
Estuda então Teologia intensamente, um pouco ao avesso daquilo que intencio­nava, pois que o colocam numa espécie de compasso de espera, provando-o antes de lhe outorgarem as responsabilidades pastorais que ele almeja. Esses tempos, contraditórios e doridos, contra os quais muitas vezes ele se revolta, acabam por se revelar providenciais. Volta às traduções do Novo Testamento, se bem que ainda não operando com os textos gregos originais. Em 1652 o Conselho da Igreja aprecia Os Quatro Evangelhos e Actos dos Apóstolos, traduzidos em português pelo visitador de doentes, João Ferreira, e atribui-lhe uma quantia equivalente a um mês e meio de trabalho.
Passará por provações muito grandes. Pede autorizações que não recebe, o seu processo de promoção emperra, quando se resolve um conflito ou uma desconfiança outros irrompem de outra parte, é colocado sob vigilância teológica. Só em 1656, a 16 de Outubro, viria a ser ordenado ministro com a imposição das mãos. Contava então 28 anos de idade.
De 1656 a 1663 partirá como Ministro Pregador em missão para Ceilão e sul da Índia. Mas essa distância não atenua o clima de suspeição que o rodeia. Experimenta hostilidades que derivam das interpretações ambíguas da sua dupla pertença: pela sua cidadania é menorizado face aos holandeses. Chega a ser proibido de pregar em português, porque era a língua da potência rival. Mas, por estar ao serviço dos holandeses como ministro ordenado da Igreja calvinista, é perseguido junto dos portugueses, que o consideram apóstata. O seu retrato teria sido queimado publicamente em Goa. E os missionários católicos travam com ele, e acerca dele, incendiadas polémicas. Da sua actividade literária, neste período, há apenas a notícia da tradução de alguns salmos. Tudo somado, a expedição missionária de Ferreira d'Almeida revela-se um fracasso e, perante a crueza dos factos, o Conselho de Batávia pede-lhe que volte o mais depressa possível.

Regressa então para a segunda e definitiva estadia em Batávia. Tinha 35 anos de idade e corre o ano de 1663. Dedica-se Ferreira ao serviço pastoral. Preside à liturgia junto dos chamados «portugueses negros», pessoas da mais humilde condição e de profusas raças, falantes de português quando ali já não havia nome de Portugal. Elabora folhetos catequé­ricos, polemiza com os missionários católicos, pede mais livros sagrados em língua espa­nhola, revê e imprime na oficina gráfica do governo de Batávia a sua tradução das Fábulas de Esopo, queixa-se das intempéries climatéricas, tem muitos achaques, trabalha poetica­mente os Salmos para serem cantados, termina a tradução, a partir do grego, do Novo Tes­tamento (1676), espera e desespera pelo imprimatur que não lhe dão e não chega... Tudo o que lhe diz respeito ganha uma lentidão enervante, pois se os méritos são reconhecidos, o poder holandês não vê com bons olhos a difusão da língua da potência comercial que veio a suceder. Por fim anunciam-lhe que o seu Novo Testamento será editado em Amesterdão e, quando o recebe, conta «mil erros», que ele próprio corrigirá à mão, como o prova o único exemplar que se conhece, e que está em depósito na Biblioteca Nacional.
Superada esta prova, deixam-no então, livre de todo o trabalho pastoral, para se dedicar a traduzir o Antigo Testamento, tomando para esse projecto talvez o Hebraico, certamente o latim da Vulgata e traduções em línguas que dominava. Nesse trabalhará até a altura da sua morte, em 1691. Na sua tradução tinha chegado até Ez 48,21, que reza assim: «E o que restar será para o príncipe; desta e da outra banda da santa oferta, e da pos­sessão da cidade, diante das vinte e cinco mil canas da oferta, na direcção do termo do oriente e do ocidente, diante das vinte e cinco mil, na direcção do termo do ocidente, correspon­dente às porções será a parte do príncipe: e a oferta santa e o santuário da casa estarão no meio.» Poderia, este passo, quase ser um fragmento da sua vida: o oriente e o ocidente congraçados, a oferta e o santuário que se atravessam como centro, «e o que restar», que é sempre um saber que se não sabe.
Traduzira assim o português João Ferreira Annes d'Almeida todo o Novo Testa­mento e cerca de 90% do Antigo Testamento. Há divergências quanto à autoria final dos complementos. O que se confirma, com certeza, é que o Rev. Jacobus op den Akker, mis­sionário companheiro de Almeida, teve um papel decisivo nesse processo.

Traduzir a Bíblia

Tencionamos em volume posterior desta Bíblia Ilustrada deter-nos sobre a posteri­dade de Almeida, embora se erga essa intransponível dificuldade que é a inexistência de uma edição crítica. Gostávamos de reforçar, nesta sede, o coro daqueles que reclamam a urgência de semelhante projecto.

A chamada Bíblia de Almeida é um marco da cultura e da língua portuguesa, mas entrar nela é penetrar numa desacertada nebulosa de complementos, emendas, revisões, edições, versões que se por um lado actualizam, também escurecem (e muito) o dado ori­ginal. Sem a reconstrução genética do texto recebido, é arriscado apontar como genuína mão de Almeida o que quer que seja. A compreensão exacta da complexidade do seu labor, do seu génio e limites, é um desafio ainda não abraçado. Esperamos que esta divul­gação que fazemos, leitura cuidada, embora não científica, da chamada Edição Princeps, possa contribuir para se comprovar necessidade e buscar remédio. Quanto aos critérios que utilizámos, e que tivemos a ocasião de confrontar com os especialistas que, neste momento, coordenam a edição do Corpus Biblicum Catalanicum, faremos detalhada descrição no posfácio anunciado.

A confusão ininteligível que as línguas balbuciam, a dispersão dos destinos por ex­periências controversas do controverso mundo, os códigos, os alfabetos e os relatos con­vocam incessantemente a existência para a necessidade da tradução. Por isso se diz que a tradução nasceu com Babel, que é como quem diz, nasceu com embaixadores, espiões, aventureiros, navegadores, perscrutadores e curiosos, de que, embora não se diga, todos temos um pouco. Explica Paul Ricoeur que a problemática da tradução nos obriga a ca­minhar por duas vias, dois canais para o único acesso: a produção de um equivalente (a capacidade de criar numa língua uma realidade comparável ao que me é dado noutra) e o choque do incomparável (que é, de certa forma, a prova do estrangeiro ou do amigo: a preservação da distância na proximidade. O texto só é traduzido se for respeitado o sen­tido do seu intraduzível segredo.) A mesma sabedoria que se entrevê no mandamento antigo de um rabino: «quem traduz literalmente é um falsário; quem acrescenta alguma coisa é um blasfemo». Dizer e aceitar a impossibilidade de dizer.

Neste limiar sempre habitou a Bíblia, texto transformante por excelência. A tradu­ção não é apenas uma condição de recepção. No caso da Bíblia, traduzir foi um impera­tivo da sua própria formulação, porque dentro dessa biblioteca há códigos linguísticas que emergem e se apagam, há o tempo que empresta a sua espessura para que o esqueci­mento construa paredes, há o inconciliável teológico inscrito pelo inédito do gesto: «Eis que eu faço novas todas as coisas». Nenhuma coisa houve lida que não fosse, que não seja, relida.

Não admira, portanto, que em torno ao texto bíblico e à conveniência ou não das leituras e traduções, a modernidade vá expressar alguns dos seus conflitos decisivos. Em 1534, Lutero apresenta a tradução alemã, logo seguido por um conventual espanhol, en­tretanto convertido ao protestantismo, Cassiodoro de Reina, que edita, em 1569, a Bíblia dei Oso. A primeira tradução portuguesa de toda a Bíblia é produzida não na pátria, mas no Extremo Oriente, e quando o Império Português entrava em seu crepúsculo. O mundo católico, congregado pelo Concílio de Trento, proíbe tal adaptação da Escritura às línguas nacionais, universalizando a tradução latina (chamada Vulgata). Mas uma vez aberto o livro dos livros, o mundo deixou de ser o mesmo.

Apresentamos, nesta edição, a Bíblia de Almeida acrescida de um corpus iconográ­fico extraordinário, que traz a assinatura de Ilda David'. Na Edição Princeps daquele tra­dutor, sobretudo a folha de rosto aparece graficamente trabalhada. Mas mesmo antes de Gutenberg ter aviado as impressões, publicava-se já, com muita procura, a Biblia Pauperum (Bíblia dos pobres). Páginas de xilogravuras mostravam personagens, cenas e até as correspondências que nem sempre se adivinhavam na leitura do texto, mas que depois se não esqueciam. Aos poucos foram entrando as legendas e, por aí, o inevitável romance: as imagens não fixam, interpretam. Com os tipos móveis da imprensa construíram-se mara­vilhas, no que às Bíblias ilustradas respeita. A narrativa iconográfica não deixa de ser uma hermenêutica, uma espécie de teologia visual, um comentário que corre o risco de enve­lhecer melhor que muitos dos tratados de teologia pura.

Quando Santo Agostinho, no seu De Doctrina Christiana, escrevia que quem folhear a Bíblia «encontrará muitos géneros de locução de tanta beleza», ousava temerariamente equiparar os Livros Sagrados à excelência literária dos textos clássicos, reconhecendo que a qualidade espiritual é também enunciada por uma qualidade estética. Para Agostinho, a Bíblia era, claro, fonte de experiência religiosa, mas também, e de um modo irresistível, uma escola de escrita e de leitura. O seu século, porém, estava encravado num estreito cânone de beleza: quem quisesse aprender a surpresa e perfeição do estilo devia unicamente beber na tradição retórica ou poética tradicional, que é como quem diz greco-Iatina. A Bíblia era apenas um suporte religioso. Uma língua de trapos acusada de rusticitas. As coisas que contava tinham um sentido, mas descritas de um modo irrelevante numa sociedade que se amotinava em torno aos filósofos, aos dramaturgos ou aos tribunos. As palavras de Agostinho falando de «tanta beleza» a propósito da Bíblia representariam, aos ouvidos do seu tempo, não um juízo, mas uma provocação.

A Bíblia (literalmente os livros) é um heterogéneo espaço literário. Reúne desde o desenho que as genealogias repetem monotonamente, traço a traço, até ao nome que assoma uma só vez, como um relâmpago. Desde cosmogonias a acordos políticos e guerreiros, desde alterações cósmicas a altercações domésticas. Nela encontramos: tragédias, comé­dias, epopeias, autobiografias, cantos de amor, relatos de naufrágios, índices historiográficos, peças de folclore, inventários, livros de viagem, registos de propriedade, bênçãos, maldições, calendários, aforismas... numa profusão que infinitamente se desdobra. A Bíblia representa um «atlas iconográIico», «estaleiro de símbolos», «imenso dicionário», como Paul Claudel lhe chamou. É um reservatório de histórias, um armário cheio de personagens, um teatro do natural e do sobrenatural, um fascinante laboratório de linguagens. Usa a língua literária, claro, mas não recusa o linguajar desnudo que é o dizer corrente. Mantém uma respiração polifónica, sumptuosa e litúrgica, mas também uma sintaxe pobre, esforçada, cheia de lacunas e de anomalias. A Bíblia não escolhe propriamente uma linguagem: é uma monumental acumulação de possibilidades.

É tudo isso e também aquilo que nem conseguimos dizer, porque é tão difícil, tão diferente dizer uma literatura construída, não o esqueçamos, por poetas e escritores anó­nimos, uma literatura que foi segredada e recitada durante séculos, antes de ser escrita, que é tecida de palavras que solicitam o indizível, e que foram, e que são, não apenas a expressão das histórias, mas o rastro de um estremecimento que as atravessa. Talvez seja isso o vento de Deus.